sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Distância


Eu não ouvi você sair
Nem sei como ainda estou aqui
Mas não quero mover nada
Pra não mudar minha memória

Não quero atender o telefone
Ele simplesmente me acordaria desse sonho
E nem saio dessa cama
Pra não arriscar esquecer cada detalhe
Cada cheiro, cada gesto
De tudo que se passou

Não consigo dormir
Nem levantar, nem respirar
Até quanto você finalmente estiver
De novo aqui deitado, ao meu lado.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Permissão


Hoje me permito não ter inspiração
Me permito não escrever declarações
Nem dizer coisas inteligentes
Me permito toda a ignorância do mundo
Rir do absurdo
Curtir a desgraça
Ser mal-educada
Bem desbocada
Me permito até mesmo dormir 24 horas
E ser abstrata.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

A Cantora Careca


Só pra fazer uma introdução de um texto teatral de Eugene Ionesco, "A Cantora Careca" foi uma das primeiras peças do gênero que chamamos hoje de Non-sense ou Teatro do Absurdo. Como estou estudando esse texto frenéticamente esses dias, visto que o encenarei em breve, resolvi postar um pedaço, uma cena na verdade, na qual me identifiquei e que pra mim, por mais incrível que pareça fez todo sentido.


CENA: O CASAL MARTIN

(O Sr. e a Sra. Martin sentam-se frente a frente, sem se falarem. Sorriem um para o outro, timidamente. O diálogo que se segue deve ser dito com voz arrastada, monótona, meio cantante, sem nuances)

SR. MARTIN – Desculpe, minha senhora, mas me parece, se não estou enganado, que a conheço de algum lugar.

SRA. MARTIN – Eu também, meu senhor, parece que o conheço de algum lugar.

SR. MARTIN – Por acaso, minha senhora, eu não a teria visto em Manchester?

SRA. MARTIN – É bem possível. Eu sou da cidade de Manchester! Mas não me lembro muito bem, meu senhor, eu não poderia dizer se o vi ou não!

SR. MARTIN – Meu Deus, que curioso! Eu também sou da cidade de Manchester, minha senhora!

SRA. MARTIN – Que curioso!

SR. MARTIN – Que curioso! … Só que eu, minha senhora, saí de Manchester há mais ou menos cinco semanas!

SRA. MARTIN – Que curioso! Que estranha coincidência! Eu também, meu senhor, saí da cidade de Manchester há mais ou menos cinco semanas.

SR. MARTIN – Peguei o trem das 8 e meia da manhã, que chega em Londres às 15 para as 5, minha senhora.

SRA. MARTIN – Que curioso! Que estranho! E que coincidência! Eu também peguei o mesmo trem, meu senhor.

SR. MARTIN – Meu Deus, que curioso! Então, minha senhora, talvez eu a tenha visto no trem?

SRA. MARTIN – É bem possível, pode ser, é plausível, e, afinal, por que não!… Mas eu não me lembro disso, meu senhor!

SR. MARTIN – Eu estava viajando de segunda classe, minha senhora. Não existe segunda classe na Inglaterra, mas assim mesmo eu viajo de segunda classe.

SRA. MARTIN – Que estranho, que curioso, e que coincidência! Também eu, meu senhor, estava viajando de segunda classe!

SR. MARTIN – Que curioso! Talvez nós tenhamos nos encontrado na segunda classe, minha cara senhora!

SRA. MARTIN – É bem possível, pode ser. Mas eu não me lembro muito bem, meu caro senhor!

SR. MARTIN – Meu lugar era no vagão número 8, 6o. compartimento, minha senhora!

SRA. MARTIN – Que curioso! Meu lugar também era no vagão número 8, 6o. compartimento, meu caro senhor!

SR. MARTIN – Que curioso e que estranha coincidência! Talvez nós tenhamos nos encontrado no 6o. compartimento, minha cara senhora?

SRA. MARTIN – É bem possível, afinal! Mas eu não me lembro, meu caro senhor!

SR. MARTIN – Para falar a verdade, minha cara senhora, eu também não me lembro, mas é possível que tenhamos nos visto lá, e, pensando bem, a coisa me parece mesmo bem possível!

SRA. MARTIN – Oh! Realmente, é claro, realmente, meu senhor!

SR. MARTIN – Que curioso!… Meu lugar era o número 3, perto da janela, minha cara senhora.

SRA. MARTIN – Oh, meu Deus, que curioso e que estranho, meu lugar era o numero 6, perto da janela, em frente ao senhor, meu caro senhor.

SR. MARTIN – Oh, meu Deus, que curioso e que coincidência!… Nós estávamos então frente a frente, minha cara senhora! É aí que devemos ter-nos visto!

SRA. MARTIN – Que curioso! É possível mas eu não me lembro, meu senhor.

SR. MARTIN – Para falar a verdade, minha cara senhora, eu também não me lembro. Contudo, é bem possível que nós tenhamos nos visto naquela ocasião.

SRA. MARTIN – É verdade, mas eu não estou muito certa disso, meu senhor.

SR. MARTIN – Mas não foi a senhora, minha cara senhora, a senhora me pediu para pôr sua maleta no bagageiro e que em seguida me agradeceu e me deu permissão para fumar?

SRA. MARTIN – É sim, devia ser eu, meu senhor! Que curioso, que curioso, e que coincidência!

SR. MARTIN – Que curioso, que estranho, que coincidência! Muito bem, e então, então talvez nós tenhamos nos conhecido naquele momento, minha senhora?

SRA. MARTIN – Que curioso e que coincidência! É bem possível, meu caro senhor! Contudo, acho que não me lembro.

SR. MARTIN – Eu também não, minha senhora. (Um momento de silêncio. O relógio bate)

SR. MARTIN – Desde que cheguei a Londres, moro na rua Bromfield, minha cara senhora.

SRA. MARTIN – Que curioso, que estranho! Eu também, desde a minha chegada a Londres, moro na rua Bromfield, meu caro senhor.

SR. MARTIN – Que curioso, mas então, talvez nós tenhamos nos encontrado na rua Bromfield, minha cara senhora.

SRA. MARTIN – Que curioso, que estranho! É bem possível, afinal! Mas eu não me lembro, meu caro senhor.

SR. MARTIN – Eu moro no número 19, minha cara senhora.

SRA. MARTIN – Que curioso, eu também moro no número 19, meu caro senhor.

SR. MARTIN – Mas então, mas então, mas então, mas então, mas então, talvez nós tenhamos nos visto naquela casa, minha cara senhora?

SRA. MARTIN – É bem possível, mas eu não me lembro, meu caro senhor.

SR. MARTIN – Meu apartamento fica no 5o. andar, é o número 8, minha cara senhora.

SRA. MARTIN – Que curioso, meu Deus, que estranho! E que coincidência! Eu também moro no 5o. andar, no apartamento número 8, meu caro senhor.

SR. MARTIN – Que curioso, que curioso, que curioso e que coincidência! Sabe no meu quarto, eu tenho uma cama. Minha cama fica coberta com um edredon verde, encontra-se no fim do corredor, entre o lavabo e a biblioteca, minha cara senhora!

SRA. MARTIN – Que coincidência, ah meu Deus, que coincidência! Meu quarto também tem uma cama com um edredon verde e se encontra no fim do corredor, entre o lavabo, meu caro senhor, e a biblioteca!

SR. MARTIN – Que estranho, curioso! Então, minha senhora, moramos no mesmo quarto e dormimos na mesma cama, minha cara senhora. Talvez seja lá que nós tenhamos nos encontrado!

SRA. MARTIN – Que curioso e que coincidência! É bem possível que tenhamos nos encontrado lá, e talvez até mesmo na noite passada. Mas eu não me lembro, meu caro senhor.

SR. MARTIN – Eu tenho uma filhinha, minha filhinha, ela mora comigo, minha cara senhora. Ela tem 2 anos, é loira, tem um olho branco e um olho vermelho, é muito bonita e se chama Alice, minha cara senhora.

SRA. MARTIN – Que estranha coincidência! Eu também tenho uma filhinha, ela tem 2 anos, um olho branco e um olho vermelho, é muito bonita e também se chama Alice, meu caro senhor.

SR. MARTIN – ( com a mesma voz arrastada, monótona) Que curioso e que coincidência! E estranho! Talvez seja a mesma, minha cara senhora!

SRA. MARTIN – Que curioso! É bem possível, meu caro senhor. Um momento de silêncio bem longo… O relógio bate vinte e nove vezes.

SR. MARTIN – (após refletir longamente, levanta-se lentamente e, sem se apressar, dirige-se até a Sra. Martin que, surpresa com o ar solene do Sr. Martin, também se levantou, muito suavemente; o Sr. Martin fala com a mesma voz singular, monótona, vagamente cantante) Então, minha cara senhora, não há duvida, nós já nos vimos e a senhora é, creio eu, a minha própria esposa… Elisabeth, eu reencontrei você!

SRA. MARTIN – (aproximando-se do Sr. Martin sem se apressar. Eles se abraçam sem expressão. O relógio soa uma vez, muito forte. A batida do relógio deve ser tão forte que deve fazer os espectadores se sobressaltarem. O casal Martin não a ouve.)

Donald, meu querido, é você!

(Eles se sentam na mesma poltrona, permanecem abraçados e adormecem. O relógio bate ainda várias vezes. Mary, na ponta dos pés, um dedo nos lábios, entra suavemente em cena e dirige-se ao público)